Às três da manhã, não há escapatória para a profusão dos nossos
desejos assassinados em praça pública, sem testemunhas a não ser o silêncio,
que antes ininterrupto, antecedera o tiro. Largas horas em meio ao caos
estático desses quentes dias, noites e madrugadas. Vaguidões, rouquidões e tormentos.
A noite consumiu o corpo que não dormia e que apenas projetava os músculos
estendidos e exauridos pela corrosão do vento. Fostes um inventário de
sentimentos que, na contabilidade dos afetos, de repente, se apagou como um
extrato bancário esquecido no porta-luvas do carro.
Ao amanhecer, os velhos cheiros ainda nas dobras do corpo e
da casa. O quarto, a cama e o completo desfecho dos abraços nas dobras dos
travesseiros vazios. Nem mais vestígios do corpo, do colo ou do aconchego. Resta-nos
o que escapa, o que escava e fere, o que suplanta e sara. Fica o gotejar da pia,
a grama por cortar, o café frio e a noite por chegar. Avaliar as versões dos
fatos e concluir calado exíguas e vazias palavras sem cor nem mistério.
Às duas da tarde, a claridade do dia ofuscando os olhos,
pois o que fora visto não foi mais o retrato estampado no canto da parede acima
dos olhos. A soma das horas verteu-se no opaco dos sentimentos etéreos. O tempo
é um senhor que tinge as paredes de ocre e o que nos resta é um largo sem
amparos, aparas ou arestas. Como um papel em branco, prenúncio de uma nova história
a ser pintada.