quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Desbotado


Às três da manhã, não há escapatória para a profusão dos nossos desejos assassinados em praça pública, sem testemunhas a não ser o silêncio, que antes ininterrupto, antecedera o tiro. Largas horas em meio ao caos estático desses quentes dias, noites e madrugadas. Vaguidões, rouquidões e tormentos. A noite consumiu o corpo que não dormia e que apenas projetava os músculos estendidos e exauridos pela corrosão do vento. Fostes um inventário de sentimentos que, na contabilidade dos afetos, de repente, se apagou como um extrato bancário esquecido no porta-luvas do carro.

Ao amanhecer, os velhos cheiros ainda nas dobras do corpo e da casa. O quarto, a cama e o completo desfecho dos abraços nas dobras dos travesseiros vazios. Nem mais vestígios do corpo, do colo ou do aconchego. Resta-nos o que escapa, o que escava e fere, o que suplanta e sara. Fica o gotejar da pia, a grama por cortar, o café frio e a noite por chegar. Avaliar as versões dos fatos e concluir calado exíguas e vazias palavras sem cor nem mistério.

Às duas da tarde, a claridade do dia ofuscando os olhos, pois o que fora visto não foi mais o retrato estampado no canto da parede acima dos olhos. A soma das horas verteu-se no opaco dos sentimentos etéreos. O tempo é um senhor que tinge as paredes de ocre e o que nos resta é um largo sem amparos, aparas ou arestas. Como um papel em branco, prenúncio de uma nova história a ser pintada.

domingo, 4 de outubro de 2015

Abutres

a Poe e Kafka

Nesta manhã eu vi um abutre voando próximo à janela do meu quarto. Depois constatei no Google que não existem abutres neste espaço do mundo. Depois acordei. Excrementos de abutre estavam sobre os meus chinelos. Caminhei descalço pela casa e da cama ao banheiro havia penas de abutre pelo chão. Bem antes mesmo de escovar os dentes, e antes mesmo de olhar o meu rosto no espelho, passei a idealizar um modo eficiente para limpar a carcaça de um abutre sôfrego e apodrecido que, cercado por sangue coagulado, jazia sob o chuveiro que gotejava sangue de abutre.

Como se desfazer de um abutre morto e em decomposição no banheiro de casa? As larvas vieram do ralo e urubus obstinados tentaram romper o basculante. Fora inútil, pois o banheiro estava mais escuro e fechado do que antes de tudo aquilo. Mesmo assim, o odor tomou o quarteirão, mas ninguém desconfiou, ocupados que estavam com odores maiores pela calçada.

Como um homem comeria uma coisa que não só estivera viva, mas crua; não só crua, mas apodrecida e fétida e sôfrega?

E eu estava diante da iminente necessidade de digerir o abutre, pois essa seria a única forma de me livrar dele... ou eu ou ele naquele minúsculo banheiro de um apartamento também minúsculo e impessoal com paredes brancas com piso carmim e janelas pequenas, pois seriam mais baratas e não influenciariam no preço do aluguel que o dono, ávido por lucros e mais dinheiro, acertou na imobiliária antes que eu o alugasse depois um ou dois telefonemas.

Deglutir a morte para me safar dela... Prostrei-me diante dos azulejos encardidos e brancos como um servo de um Deus que se quer maior e mais poderoso que eu para que eu possa me sentir mais subserviente e pacífico. Bebi do sangue como uma girafa abobalhada de calor e sede diante de um lago numa savana quase desértica. A língua roçou com força e sugou com a precisão de sua anatomia o gelatinoso e vivo líquido encrostado no rejunte desforme feito com desleixo por um discípulo do abutre.

O gosto do abutre e seu sangue agora circulando pelas entranhas do meu corpo.

Agora eu seria um abutre e mais agora eu estaria diante do pequeno basculante do banheiro minúsculo observando um corpo inerte sobre o piso e sob o gotejar do chuveiro.