terça-feira, 26 de abril de 2011

transportando ventilador


Veio uma frente fria. O homem levando um ventilador na garupa da bicicleta, eu vi hoje na ciclovia e além disso uma mala no alto do guarda-roupas, uma viagem em latência. Somos hospedes num corpo que carrega a gente e vai levando tudo. O homem indo e eu mais ao fundo na minha obstetrícia dissecativa das coisas.

Uma racionalidade em frangalhos suportando um eu que deseja tudo, que quer, sem saber o que. Um cara indo sem saber pra onde, ou sou eu, sem saber seu destino, inventando argumentos. Sem saber em que lugar isso vai dar. Um enredo sem texto, clímax, catarse.

Mário galopa o alazão, sem fé, chão, desafio. Não assimilo mais nada. As coisas vão acontecendo ao ermo, sem eira nem beira. Uma situação alarmante comove a cidade, como um jogo de copa do mundo, é disso que me ocupo. Tudo está parado como se fizesse três horas da tarde. Uma paisagem lunar. Não me alcanço por nado, vou dissecando uma cebola com o pressentimento de que no fim tudo isso é um nada. Uma alcachofra e folhas e folhas que protegem a si mesmas e só.

A gravidade das coisas que pulsam: uma colher, um copo vazio. O fogão apagado, solenemente sem chamas. A árvore suspensa antes de ser lenha. O fogo escondido no carvão do churrasco, tudo aqui antecedendo, pressentido. A semente que premedita um vegetal, uma flor, um amor, um final que se descama em recomeço. Toda pele da extensão do meu corpo um dia será outra. Assim as histórias vão acontecendo, sobrepostas, antecedendo. Não quero o dom para predizer o futuro.

O homem com o ventilador é um predecessor do aconchego só isso eu sei e me basta. Com a palavra organizo os sentidos das coisas e o meu mundo ganha ordem.

Disponho o ventilador num quarto alugado, o homem terá filhos ou espera tê-los, não arrisco idade, religião, objeto de desejo. Só tenho um ventilador na garupa, uma cidade quente e o que é humanamente possível: a busca pela supressão dos horrores e o descanso.

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