a Poe e Kafka
Nesta manhã eu vi um abutre
voando próximo à janela do meu quarto. Depois constatei no Google que não
existem abutres neste espaço do mundo. Depois acordei. Excrementos de abutre
estavam sobre os meus chinelos. Caminhei descalço pela casa e da cama ao
banheiro havia penas de abutre pelo chão. Bem antes mesmo de escovar os dentes,
e antes mesmo de olhar o meu rosto no espelho, passei a idealizar um modo
eficiente para limpar a carcaça de um abutre sôfrego e apodrecido que, cercado
por sangue coagulado, jazia sob o chuveiro que gotejava sangue de abutre.
Como se desfazer de um abutre morto
e em decomposição no banheiro de casa? As larvas vieram do ralo e urubus
obstinados tentaram romper o basculante. Fora inútil, pois o banheiro estava
mais escuro e fechado do que antes de tudo aquilo. Mesmo assim, o odor tomou o
quarteirão, mas ninguém desconfiou, ocupados que estavam com odores maiores
pela calçada.
Como um homem comeria uma coisa
que não só estivera viva, mas crua; não só crua, mas apodrecida e fétida e
sôfrega?
E eu estava diante da iminente
necessidade de digerir o abutre, pois essa seria a única forma de me livrar
dele... ou eu ou ele naquele minúsculo banheiro de um apartamento também
minúsculo e impessoal com paredes brancas com piso carmim e janelas pequenas,
pois seriam mais baratas e não influenciariam no preço do aluguel que o dono,
ávido por lucros e mais dinheiro, acertou na imobiliária antes que eu o
alugasse depois um ou dois telefonemas.
Deglutir a morte para me safar dela...
Prostrei-me diante dos azulejos encardidos e brancos como um servo de um Deus
que se quer maior e mais poderoso que eu para que eu possa me sentir mais
subserviente e pacífico. Bebi do sangue como uma girafa abobalhada de calor e
sede diante de um lago numa savana quase desértica. A língua roçou com força e
sugou com a precisão de sua anatomia o gelatinoso e vivo líquido encrostado no
rejunte desforme feito com desleixo por um discípulo do abutre.
O gosto do abutre e seu sangue
agora circulando pelas entranhas do meu corpo.
Agora eu seria um abutre e mais
agora eu estaria diante do pequeno basculante do banheiro minúsculo observando
um corpo inerte sobre o piso e sob o gotejar do chuveiro.
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