domingo, 4 de outubro de 2015

Abutres

a Poe e Kafka

Nesta manhã eu vi um abutre voando próximo à janela do meu quarto. Depois constatei no Google que não existem abutres neste espaço do mundo. Depois acordei. Excrementos de abutre estavam sobre os meus chinelos. Caminhei descalço pela casa e da cama ao banheiro havia penas de abutre pelo chão. Bem antes mesmo de escovar os dentes, e antes mesmo de olhar o meu rosto no espelho, passei a idealizar um modo eficiente para limpar a carcaça de um abutre sôfrego e apodrecido que, cercado por sangue coagulado, jazia sob o chuveiro que gotejava sangue de abutre.

Como se desfazer de um abutre morto e em decomposição no banheiro de casa? As larvas vieram do ralo e urubus obstinados tentaram romper o basculante. Fora inútil, pois o banheiro estava mais escuro e fechado do que antes de tudo aquilo. Mesmo assim, o odor tomou o quarteirão, mas ninguém desconfiou, ocupados que estavam com odores maiores pela calçada.

Como um homem comeria uma coisa que não só estivera viva, mas crua; não só crua, mas apodrecida e fétida e sôfrega?

E eu estava diante da iminente necessidade de digerir o abutre, pois essa seria a única forma de me livrar dele... ou eu ou ele naquele minúsculo banheiro de um apartamento também minúsculo e impessoal com paredes brancas com piso carmim e janelas pequenas, pois seriam mais baratas e não influenciariam no preço do aluguel que o dono, ávido por lucros e mais dinheiro, acertou na imobiliária antes que eu o alugasse depois um ou dois telefonemas.

Deglutir a morte para me safar dela... Prostrei-me diante dos azulejos encardidos e brancos como um servo de um Deus que se quer maior e mais poderoso que eu para que eu possa me sentir mais subserviente e pacífico. Bebi do sangue como uma girafa abobalhada de calor e sede diante de um lago numa savana quase desértica. A língua roçou com força e sugou com a precisão de sua anatomia o gelatinoso e vivo líquido encrostado no rejunte desforme feito com desleixo por um discípulo do abutre.

O gosto do abutre e seu sangue agora circulando pelas entranhas do meu corpo.

Agora eu seria um abutre e mais agora eu estaria diante do pequeno basculante do banheiro minúsculo observando um corpo inerte sobre o piso e sob o gotejar do chuveiro.

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